O Tempo. (A pensar em 2020)


A pensar em 2020

Longe, num lugar que ninguém sabia, acalentada pela incipiente neblina, uma gota de água salgada poisou, como uma pétala, na face da rocha. Depois, rolou pela falésia e entrou no mar. Deixou-se beber pelos peixes que partiam, para subir à luz transformada numa nuvem. Esperou até ficar capaz de chover, transformada em palavras, sobre todos os homens.


«Digo-vos, hoje, meus irmãos, que apesar de todas as dificuldades e frustrações do mar e da terra ainda tenho um sonho.
Sonho que algum dia, dos dois lados do horizonte, os instantes transformar-se-ão em eternidade e viverão o verdadeiro significado de esperar e crer. Nesse dia, todas as verdades serão evidentes; todos os homens e os peixes serão iguais.
Sonho que os filhos de uns e outros viverão nos lugares onde não serão julgados pela sua cor, pelos contornos do corpo ou pelo brilho dos olhos. Todos hão de encontrar-se nos intervalos dos rios e no descanso das montanhas.

 

Quando vier o tempo que há de seguir-se ao tempo que se segue ao tempo que vivemos, todos abrirão os olhos quando lhes apetecer dormir e hão de fechá-los para ficar acordados.
Nenhum ficará preso dentro de si, nem das suas dúvidas, porque o pensamento será capaz de tudo ver em todos os lugares, pois o prazer e o sofrimento dos outros será o sofrimento e o prazer de cada um.
Todos falarão as mesmas palavras porque os peixes poderão falar o que os homens pensam e ao contrário.
O tempo de que vos falo e se segue a todos os outros de que vos falei, há de transformar-se na idade da luz como as crisálidas se transformam em borboletas. A todos será dada a oportunidade do segundo nascimento, juntando a última tristeza à primeira alegria.
Haverá estradas de água e de barro que ligarão todas as pontas da terra e todas as esquinas do mar. As florestas hão de ser de novo virgens e os desertos ficarão apenas uma lembrança.

 

A vida acreditará definitivamente na memória, e os que não esperam nem acreditam deixarão de ser ouvidos porque de outros serão os sucessivos instantes de eternidade.
Creio dizer-vos a verdade dos tempos que hão de vir, mas temo ter apenas sonhado o que imagino. Ou será que não?»

José Dias Pires (in Contraditório dos Peixes)

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