Ser pai e ser avô, para voltar a ser neto
José Pires 2018
A nossa
relação de filhos e netos com a literatura começava muito cedo. Não tinha o
cheiro do papel e da tinta, mas tinha o perfume das palavras dos pais e dos avós.
Crescemos com a literatura dos afetos: as minuciosas e detalhadas histórias de
aventuras que os pais nos traziam ao fim do dia e as narrativas poéticas e
fantasmagóricas dos avós nos recantos aconchegados das casas. Era uma
literatura oral na qual se bebiam as saborosas palavras cheias de sombras
romanceadas e de metáforas luminosas que nos acicatavam a ignorância e nos
impeliam para a impaciente leitura de sabedorias escritas nas memórias de
outros.
Afagos.
Os
afagos dos avós para nos lembrarem que o seu sorriso envelheceria connosco; a
luz do corredor acesa e a porta do quarto entreaberta á espera dos pais; a
toalha na mesa e a comida pronta à espera de todos nós; os discos no
gira-discos a tocar as músicas proibidas à espera do futuro; as histórias dos
pais e os poemas dos avós para não nos esquecermos que um dos nossos
hemisférios do tempo é o que ouvimos e o outro é o que calamos; os espelhos
onde nos penteávamos, e para os quais sorríamos, para nos lembrar do que éramos;
o silêncio nas janelas, e o olhar o horizonte ao fundo da rua, para não nos
esquecermos que o nosso norte podia ser abrigo e o nosso sul podia não ser
cansaço; todos os nossos momentos de loucura, a ocidente amor e a oriente
também; o dia em que partimos transformados em pacífica despedida do nosso bairro,
das nossas memórias, a chorar e a perguntar porquê.
Perguntar
e responder.
Culpa
dos nossos avós que nos ensinaram a pequena importância de um porquê e o
incomensurável valor do porque.
Hoje
é dia de ser pai e de ser avô, para voltar a ser neto.
É dia
de sair à rua, às ruas, às nossas ruas.
E as
ruas dos nossos pais e dos nossos avós ainda têm histórias que o vento deixou
nos parapeitos das janelas. Dentro das casas há traços que ficaram amarelecidos
pelo tempo nos espaços dos quadros que guardavam os retratos nas paredes e que
hoje já lá não estão. Na soleira das portas, o último dos gatos marcou o seu
território. Nos arames dos estendais, as marcas das molas que seguravam os
panos parecem envergonhadas pela nudez que as acompanha. Nas portas
entreabertas, sobra o cheiro de naftalina que, sem companhia, se escapa pelas
frestas da madeira ressequida das arcas dos cobertores de papa.
As
ruas dos nossos pais e dos nossos e avós parecem estar vazias de gente nova,
mas estão repletas das ausências dos que nos são importantes, como se fosse uma
seca eternizada.
Nas
ruas dos nossos pais e dos nossos avós, o que nos dói é a sua sede, porque não
conseguimos saciá-la com o oceano de todas as memórias que ainda não fomos
capazes de descobrir e registar.
Nos
quintais das casas das ruas dos nossos pais e dos nossos avós, as velhas
figueiras e romãzeiras desfazem-se, roídas, nos seus nós, pelas formigas que
resistem ao tempo.
As
ruas dos nossos pais e dos nossos avós têm portas cujas chaves temos nas nossas
cabeças. Serão ainda as nossas ruas? Conseguiremos
encontrar-lhes as fechaduras?
E as
ruas dos nossos filhos e dos nossos netos?
As
ruas dos nossos filhos e dos nossos netos nasceram fora das muralhas. Todas
começam com a palavra futuro e nelas devia ter acabado a ditadura do tempo
porque o futuro não se perde nos dias nem se desculpa com o espaço, pois é, em
cada segundo, o horizonte.
E o
que é? Onde mora o horizonte?
Nas
ruas dos nossos filhos e dos nossos netos, devia morar a Eternidade Infantil
que sabe que ser criança é aceitar o novo e desejar tudo; aprender a existir, a
ser amado; pertencer a todos os lugares;
acreditar que há futuro; ser aventura e desafio; gostar de quem fala com os
olhos, sem gritar; ser artista, conquistado e conquistador; ser feliz com
pouco; ser inventor, poeta e escritor antes das palavras; ser impaciente e
apressado sem ligar ao tempo; conseguir ser do tamanho de um brinquedo; adorar
olhar as nuvens de barriga para o ar e inventar o faz-de-conta; gostar de
fantasias e acreditar nelas; não ter medo dos amigos imaginários; gostar do
aconchego de um colo; desafinar na melhor das afinações; colar o nariz nas
janelas e desenhar nuvens para o céu azul; pedir e oferecer com os olhos.
Nas
ruas dos nossos filhos e dos nossos netos devia morar a Eternidade Infantil que
sabe que ser criança é gostar do perfume quente da mão dos pais e dos avós e
amar o perfume fresco das mãos dos netos.
Nas
ruas dos nossos filhos e dos nossos netos devia viver, como nas ruas dos nossos
pais e dos nossos avós, a paciência que habita o veludo dos hábitos, suave,
granulada e tranquila, e que conforta o tempo que passa. Assim, os tecidos do
pó, que reconfortam todos os regressos, seriam a arte depositada dos
esquecimentos.
Nas paredes
das ruas dos nossos filhos e dos nossos netos deviam estar grafitadas todas as
palavras importantes dos nossos pais e dos nossos avós, porque os nossos avós eram
de pedra e os nossos pais de grãos de areia. Nem mais. Todos os homens e
mulheres de pedra se edificam de grãos de areia, fazem-se, desfazem-se para se
reerguerem e nos deixarem frases como estas:
— Abençoado
seja o coração que fraqueja.
— Quando
os amigos se transformam em silêncio não faz mal: oferecemos-lhes uma árvore.
— Só
nos habituamos aos lugares depois que todos se tenham habituado a nós.
— Regressem,
sem desistir dos vossos fantasmas.
— Ninguém
regressa para desistir.
— Todos
os ausentes, que são os vossos fantasmas, esperam nas casas onde viveram. Transformaram-se
em ilhas silenciosas que parecem desabitadas, abandonadas. Ali, em ruínas,
estão, por certo, as floreiras e os canteiros invadidos por ervas daninhas. Mas
as pessoas não. Homens e mulheres, estão lá: pessoas depositadas em pó, velhas,
peregrinas, à espera que o destino encontre o dardo capaz de acertar no alvo.
E o destino
hão de ser os netos que hão de ser pais e hão de ser avós.
— Quando
olharem para algo que vos pareça estranho, não queiram descobrir nada, observem
apenas, aprendam-no; se o conseguirem, perceberão que a estranheza desaparece e
a memória fica.
Fica
para ajudar os meninos e meninas a serem pais e avós, para voltarem a ser netos,
como nós.
José
Dias Pires
(texto
adaptado de O Colégio Deformatório)
http://coraoquesenteacordaterra.blogspot.com/
ResponderEliminarCOMO SENTEM, A INQUIETAÇÃO DE QUEM É E SENTE O PASSAR DAS LUAS CHEIAS, HOJE!
DESAPARECE AGORA, AOS POUCOS NO HORIZONTE.
Muito lindo pai Ze! :D Jokas
ResponderEliminarMuito bom como sempre, todo o avô já foi neto e será sempre o espelho do avô que teve, neste caso que tivemos e como foi bom sermos netos daquele avô e por isso como é bom sermos avós agora.
ResponderEliminarAbraço mano do meio.
Muito bonito, Zé Pires. A Julieta é uma rapariga de sorte.
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