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O AFINAL ABSOLUTO

POESIA
José Dias Pires



 




Salmos do Mar e da Terra



Nas suas águas, tento adivinhar,
entre os recortes, todas as rotas:
agradeço-lhe os gestos refrescantes
do amor e do olhar
que, ao não caber no mar,
invade a montanha.
Lá tudo é viagem e aqui apenas medo
— o todo mais plural que se conhece
e que finge ignorar o lugar onde.
Onde?
Onde lhe gosta a serra.
Quando?
Quando lhe custa.
Porquê?
Porque é música.



O mar tem um traço de maré
— terra e céu, espuma e areia —
mas é estéril na terra:
beija-a,
foge,
escapa no sopro do vento
e quer crer que é sempre a maré,
cheia.
À orla chegam palavras
que um dia fugiram da serra:
gota, greta, gruta, pedra, perda.
Todos os dias o inverno do mar
se repete na terra
e é primavera.


Os outros lados: lá e cá
e apenas eu que não descodifico a mensagem
nem sou capaz de acompanhar o advérbio.
Sinto o outro lado da montanha no outro lado do mar.
Quem pode confiar na certeza vazia
que é a maré cheia que nos embala,
nos escapa e que enrolada volta?

Na terra, armo o mar, alheio,
o zénite do tempo, o espaço
e o início.
Depois, olho, sem olhar, o precipício
no cume inatingível: o grande rio
que aí apenas tem a dimensão de fio,
antes de chegar, largo, ao horizonte.

Olhar e horizonte: sabem lá qual chega primeiro
e se arrepende de não ter descoberto,
na folha em branco,
os litorais anteriores à escrita: o olho, a vontade
e a saudade.
No papiro,
o pensamento sacode-se
como uma ave que muda de página,
de vida e de palavra: Eva.
Depois, veste-se de mãos,
na margem trabalhada dos dedos,
quase garras,
e adormece na paciência da dor,
calculada,
sem esquecer os companheiros das sombras,
e as cascatas matinais que apagam,
em turbilhão,
quaisquer memórias, para acender,
em acalmia,
todos os amores desalmados.

Deitadas, as memórias parecem tão móveis:
borrifada brisa e acaso involuntário
da nuvem mais clara.
O sopro do vento faz pensar que nesse céu
se descobre, num sorriso, a vida,
o horizonte aberto, o mar por descobrir e a terra prometida.
Ignaro, julgo-me abril, fertilizo recônditos prazeres
e espero um véu que encha a lagoa ressequida
no retempero da chuva.
Remoto, acredito no germinar espiritual da floresta
que antecipa as gotículas de orvalho.
E aqui estou: plano, num gesto de cair,
e saboreio a tentação de outros saberes,
sem o saber.

Sou a espelhada imagem
na água tranquila da ausência:
aquilo que pareço só parece.
Percorro-me no corpo
como as macieiras
que procuram, nos pomos,
os seios maternais
para entoar eventuais vitórias.
Na terra procuro o mar absoluto,
aquele que não tem lugar
onde comece
ou fim em que se acabe.
Só ele sabe,
sim, só ele sabe como fenece,
porque debaixo tem,
em pedras ou areia,
o produto da terra:
a semente.

 Afinal, absoluto, o mar não é nem só nem todo.
Apenas um interminável fio,
um largo rio,
imenso lodo.
Um nó, um pé que finge ir, para ficar.
Se fosse urgente fazer,
o mar não se quebrava à espera:
seguia em frente até esquecer
tudo o que ficava, e já não era.
Um dia, quando a esperança se cansar
do que a terra não foi capaz, porque devia,
entregará a confiança ao mar
e afogará, em guerra, a sua paz.
Se for urgente fazer, o mar, por amar,
tem o poder incontinente de nos despir a pele
à espera de um carinho que por si vele,
contingente,
porque sabe não estar escrito nos espelhos
que a água é a substância dos papiros
experientes, velhos, que exalam enganos
em juvenis suspiros.


Na terra, maior que a maré, maior que o mar,
a onda verde sucede-se, mansa.
É a montanha a marejar,
onde, sem navegar o olhar se perde e se descansa.
Terra estranha: sempre a agitar tudo o que gosto.
As nuvens — palavras tão compridas —
rodeiam-se de monossílabos: céu, seu, eu, voz, nós.
Depois, desenrolam-se, plurais,
como um sopro de mar.
Fado? Destino? Acaso? Tédio? Medo?
Apenas o silêncio
a afirmar todos os gritos.
As memórias têm asas
que até os pássaros invejam
e dizem, numa desculpa quase impoluta:
beba o carrasco da mesma cicuta.

No verão, o melhor do mar é o nevoeiro:
a cortina que, a dividir, une
o que em cinzento se esconde.
Depois, é só imaginar a cor, a forma
e o lugar onde ao olho não chega olhar,
e ao dedo não basta afastar.
No verão o melhor do mar é o nevoeiro
que sabe, mas finge sempre imaginar
onde fica o tal lugar.
Onde?
Onde amar.


No céu da terra, o véu da serra,
escondido entre os montes,
escorrega para o vale,
em natureza.
No céu da terra, no véu da serra,
cada sopro de vento,
encostado a um trinado,
é o mote à sinfonia
que a ovelha bale
e a vida reza.
O murmúrio, os regatos,
o trinar, os balidos,
o bater dos chocalhos,
os aromas dos matos,
os silêncios ouvidos,
improváveis atalhos,
prometidos trabalhos,
o que não se adivinha
porque nunca se sabe,
é o que nos acompanha,
e o que fica ou caminha:
o olhar que não cabe
no que é a montanha 
com saudade do mar.



Salmo cantado de um velho

à espera do princípio.




Estou como os sapatos novos: não me caibo.
Estou como os ossos antigos: venço-me a pele
e não me caibo.
Estou como as palavras gastas: atrapalho-me a língua,
já não me caibo.
Os pensamentos fazem ricochete cá dentro: não saem,
nem me cabem.
Nada me cabe neste tempo que me ocupa tanto espaço.


Estou como os sapatos
trocados por alpargatas
e eu, pelo menino
que nunca me deixaram ser.
Sou todos os animais
e alguns dos bichos
da Arca de Noé,
e afinal nenhum,
que já nem sei de mim
para caber-me nesta arca
que não é.
Nem sorrir.
Engulo-me apenas.
Bem mais devagar
do que a vontade.

 Se ao menos chovesse:
tudo e todos num dilúvio de voo,
e me levasse por não caber
dentro de mim.
Sorriria então,
esfomeado como estou,
de partir.
Já quase me esqueci do mar azul,
o mar sem fim do mar da fé.
Já só o vejo aqui, neste meu sul
de olhos assim fechados e sem pé.
Recordo, quase a perder,
quem fui, e sou,
que vim da beira da cortiça,
da terra da azeitona.
Não me apetece este não ser,
e estar onde só estou
devido à preguiça
que me mantém à tona.

Apetece-me dormir,
tocar a nota indefinida
da pomba, do galo, do faisão,
do gato, na minha mão, equilibrista.
Agarrar na trombeta e partir
até lá bem ao fundo da avenida
e tomar o comboio na estação
até me perder, como perdi, a vista.

Apetece-me ouvir
o que me cantava o bandolim,
quase sempre num esgar,
meio gargalhado, de alegria.
Semibreves sempre a sorrir
para dentro de mim,
como quem quer desafiar
a noite a não vencer o dia.

Apetece-me sonhar
e vou, desculparão,
ficar assim, quase a fingir
que estou desacordado.
Prometo que vou tocar,
cantar afinado no orfeão
onde me esperam, a sorrir,
se lá chegar, no outro lado.


Os salmos das habituações





Só nos habituamos aos lugares
depois que todos
se tenham habituado
a nós.
Quando revestimos  os lugares
de sombras,
compreendemos
as razões que nos levaram
a habitá-los;
a reconhecer a luz e a aprender
que nenhum lugar tem cheiro
antes de lhe percebermos a cor.


A minha sombra,
cinzenta,
habituou-se
a habitar todos os lugares
onde descansa o sol.
Nela ilumino
os meus ocasos
sem ousar enfrentar o meio-dia,
olhos nos olhos
ou a deixar descansar o pôr-do-sol
no meu olhar.
Pestanejo sempre
para evitar
o deslumbramento.

 
Não há maior acaso
que a habituação
aos deslumbramentos de cor
que vivem, e morrem,
quando se escondem
na linha imaginária
onde habita o ocaso.

 
O esplendor da manhã
e as sombras da tarde
são os portais
dos lugares onde mora a noite
que me leva a não andar longe de ser
aquilo que pareço ao perto:
um cubo de gelo, a ferver,
ou um nevão, no deserto.
E afinal,
sem querer ser mais
do que ser assim,
sou rio de lava a nascer
do gelo que há
dentro de mim.


Os enormes lugares
onde a minha infância se sentiu formiga
ficaram tão menores à medida que cresci sem ela
que, quando quero ficar, corro as cortinas e fecho os olhos
por temer que os lugares se desabitem pela janela
e me deixem
vazio.
A luz não resiste à sombra que não resiste à luz.
Os dias e as noites são amantes nessa contradição:
sem controlo, na rua, descansam
no consolo das janelas abertas.


 Gosto do frio que me aconchega
nos lugares onde fui feliz.
Nesses momentos,
habito  arrepios de, boas, memórias.

Antes de caminhar para o desconhecido,
vestimos as casas por dentro
e assumimos o medo
de nos habituarmos ao frio,
quando nos desabitamos por fora.
Os caminhos conhecidos levam-nos mais tempo.
As memórias são silvas e rosas,
perfumes e espinhos onde nos perdemos,
e nos prendemos, a caminhar.



Caminha,
não mores no amor
que não mora no amar.
Namora,
que o amar
só mora no amor
de quem ama a namorar.
Não esqueças:
por vezes, regressamos aos lugares
para tentar regressar-lhes no tempo.
Cores, aromas e luz: senti-las iguais.
e afinal, como nós,
romeiros crescidos nos dias de intervalo,
as lembranças são irmãs mais velhas
enriquecidas na patine da ausência
que a respirar nos teima.


Por isso,
quando um fio de dia
desafia
um fio de luz
a não entardecer,
à noite
as sombras são claras,
e a noite do dia,
sem o saber,
é o dia da noite
a crescer.
Depois,
quando um fio de noite
desafia um fio da luz do dia
a desaparecer,
à noite
a luz escura do dia da noite
fica a saber
que a noite do dia
vai adormecer.


De manhã,
a paciência que habita,
suave,
o veludo dos hábitos,
conforta o tempo que passa,
granulada, tranquila.
Tecido de pó
que reconforta todos os regressos.
Arte depositada dos esquecimentos.



 À tarde,
quando as árvores se espreguiçam
acontece o aconchego:
sombra, cama, alimento,
frescor ameno e saboroso.
Quando as árvores se espreguiçam
é a nudez que se oferece:
despida, folha, fruto,
cálido gozo e refrigério.


Na almofada do mar,
onde os humores das ondas
nos deixam habitar
as fronteiras das gaivotas,
sentimo-nos livres.
Será o quebrar das ondas
o cântico dos cânticos
que habitam as águas?
No mar tudo é silêncio:
o tempo, a paciência
que sempre partem
para voltar
ao habitual júbilo da terra.
Essa sim,
a amante canora
com o seu amor nos braços:
o tempo do desmaio
de cada maré,
como se cantasse
um salmo ao mar.


Habituados ao vai e vem irrepetível,
os segredos do mar escondem-se
na intimidade dos areais.
Desfazem-se,
para não habitar nas memórias da praia,
ou chicoteiam as rochas
que, sabem, nunca desvendarão as máscaras,
nem a infância.

As máscaras da infância
ajudam-nos a permanecer infantes?
Ao fantasma que nos desabita
restam as promessas
que lhe não foram feitas?

Os sorrisos entre lágrimas
são estas alegres incertezas
que nos aquecem a alma:
cada vez mais a eternidade
que nos espreita, entre nuvens,
à espera que as máscaras diurnas,
usadas até à exaustão da noite,
se transformem em pele
e fiquem, para sempre, impressas
como uma nódoa — negra?


Ainda bem.
Nem sempre,
nem para sempre,
somos a roupa que nos pomos.
Uns, a desejar olhar a caixa mágica
de plásticas ilusões orientadas
— conveniência.
Outros, a fingir que olham,
como quem sai,
na companhia de Pandora,
a mascarar o olhar de preocupada ignorância.
Uns que, a desejar, apenas pedem;
outros, por não fazer, a olhar para dentro,
incapazes, sequer, de se olhar por dentro.
Chega o outono:
Oferece à terra a viuvez admirável das árvores;
impõe ao corpo a viuvez irreparável das mãos.





Salmo quase Branco


Olhos melosos disseram: «Vamos».
E abriram os braços,
como se um abraço fosse
sinal de porta aberta ao que se ouviu.
Entrámos.
Ali, ninguém sentiu
que o estranho sorriso, agridoce,
escondia, entre dentes,
a vontade de outros amos.

 Frente aos vultos e aos olhares das feras,
lançámos, sem medo, as dúvidas severas:
mãos na frente,
contrariando esperas,
porque, a ter alguma, a nossa glória é esta:
em primeiro lugar, o que é humano,
na certeza clara que não é eterno,
nem maior.
E viver: ter, no tempo que nos resta,
o que nos valha rejeitar,
se for profano,
para poder chegar,
aconchegados,
ao colo materno
do primeiro amor.

 Sabemos que por ali,
se vamos,
os pés nos dizem que o caminho é diferente,
apesar das maviosas loas de tais amos
cujo devir se perde
e, ao olhar, se sente.
Não, não é por ali o lugar onde!
É preferível tropeçar,
cair,
tingir de sangue as pedras da calçada.
Ficar doridos, magoados
e aprender que, para tal lugar,
não queremos ir.
Sendo tão pouco,
este tanto é o nada
que nos ajuda no teimoso reerguer.


Concebidos para descobrir a novidade
no fogo que redime as florestas,
se não houver nada melhor,
deixemos marcas, fundas, lamacentas
e não cantemos loas à saudade,
nem bailemos à luz das sombras
nessas festas
que são sempre o ilusório corredor
que impávido desagua nas tormentas.

Amemos o não possível!
Sim, nós amamos o impossível.
Que, se não for mais,
tal amor será assim:
trepar as fragas e cair
nas cálidas areias
e ficar roto,
por dentro.
É preferível ganhar,
no não,
a máscara do sim,
que ser esconderijo de maviosas teias.


O ali, com que nos brindam,
esconde-se nos cortinados dos salões;
no centro, entre acepipes, dos conclaves;
nas miragens de avenidas que não findam;
nas mãos de quem dá, e tira, aos repelões,
rasgando feridas, em gestos suaves.
Abençoada seja esta razão perdida
que nos aflora a voz, que da boca se escapa
e nos leva por aqui, em passo resoluto,
a determinar a  fronteira escondida
nas ofertas que nos chegam à socapa
e a amar o não possível que é o afinal absoluto.





Título: O Afinal Absoluto
Texto: © José Dias Pires
Ilustração (miolo e capa):© José Dias Pires
©Edições Transmaginar
Outubro de 2019
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