Ser pai e ser avô, para voltar a ser neto

                                                         











  José Pires 2018


 José Pires 1959



A nossa relação de filhos e netos com a literatura começava muito cedo. Não tinha o cheiro do papel e da tinta, mas tinha o perfume das palavras dos pais e dos avós. Crescemos com a literatura dos afetos: as minuciosas e detalhadas histórias de aventuras que os pais nos traziam ao fim do dia e as narrativas poéticas e fantasmagóricas dos avós nos recantos aconchegados das casas. Era uma literatura oral na qual se bebiam as saborosas palavras cheias de sombras romanceadas e de metáforas luminosas que nos acicatavam a ignorância e nos impeliam para a impaciente leitura de sabedorias escritas nas memórias de outros.
Afagos.
Os afagos dos avós para nos lembrarem que o seu sorriso envelheceria connosco; a luz do corredor acesa e a porta do quarto entreaberta á espera dos pais; a toalha na mesa e a comida pronta à espera de todos nós; os discos no gira-discos a tocar as músicas proibidas à espera do futuro; as histórias dos pais e os poemas dos avós para não nos esquecermos que um dos nossos hemisférios do tempo é o que ouvimos e o outro é o que calamos; os espelhos onde nos penteávamos, e para os quais sorríamos, para nos lembrar do que éramos; o silêncio nas janelas, e o olhar o horizonte ao fundo da rua, para não nos esquecermos que o nosso norte podia ser abrigo e o nosso sul podia não ser cansaço; todos os nossos momentos de loucura, a ocidente amor e a oriente também; o dia em que partimos transformados em pacífica despedida do nosso bairro, das nossas memórias, a chorar e a perguntar porquê.
Perguntar e responder.
Culpa dos nossos avós que nos ensinaram a pequena importância de um porquê e o incomensurável valor do porque.
Hoje é dia de ser pai e de ser avô, para voltar a ser neto.
É dia de sair à rua, às ruas, às nossas ruas.
E as ruas dos nossos pais e dos nossos avós ainda têm histórias que o vento deixou nos parapeitos das janelas. Dentro das casas há traços que ficaram amarelecidos pelo tempo nos espaços dos quadros que guardavam os retratos nas paredes e que hoje já lá não estão. Na soleira das portas, o último dos gatos marcou o seu território. Nos arames dos estendais, as marcas das molas que seguravam os panos parecem envergonhadas pela nudez que as acompanha. Nas portas entreabertas, sobra o cheiro de naftalina que, sem companhia, se escapa pelas frestas da madeira ressequida das arcas dos cobertores de papa.
As ruas dos nossos pais e dos nossos e avós parecem estar vazias de gente nova, mas estão repletas das ausências dos que nos são importantes, como se fosse uma seca eternizada.
Nas ruas dos nossos pais e dos nossos avós, o que nos dói é a sua sede, porque não conseguimos saciá-la com o oceano de todas as memórias que ainda não fomos capazes de descobrir e registar.
Nos quintais das casas das ruas dos nossos pais e dos nossos avós, as velhas figueiras e romãzeiras desfazem-se, roídas, nos seus nós, pelas formigas que resistem ao tempo.
As ruas dos nossos pais e dos nossos avós têm portas cujas chaves temos nas nossas cabeças.  Serão ainda as nossas ruas? Conseguiremos encontrar-lhes as fechaduras?
E as ruas dos nossos filhos e dos nossos netos?
As ruas dos nossos filhos e dos nossos netos nasceram fora das muralhas. Todas começam com a palavra futuro e nelas devia ter acabado a ditadura do tempo porque o futuro não se perde nos dias nem se desculpa com o espaço, pois é, em cada segundo, o horizonte.
E o que é? Onde mora o horizonte?
Nas ruas dos nossos filhos e dos nossos netos, devia morar a Eternidade Infantil que sabe que ser criança é aceitar o novo e desejar tudo; aprender a existir, a ser amado;  pertencer a todos os lugares; acreditar que há futuro; ser aventura e desafio; gostar de quem fala com os olhos, sem gritar; ser artista, conquistado e conquistador; ser feliz com pouco; ser inventor, poeta e escritor antes das palavras; ser impaciente e apressado sem ligar ao tempo; conseguir ser do tamanho de um brinquedo; adorar olhar as nuvens de barriga para o ar e inventar o faz-de-conta; gostar de fantasias e acreditar nelas; não ter medo dos amigos imaginários; gostar do aconchego de um colo; desafinar na melhor das afinações; colar o nariz nas janelas e desenhar nuvens para o céu azul; pedir e oferecer com os olhos.
Nas ruas dos nossos filhos e dos nossos netos devia morar a Eternidade Infantil que sabe que ser criança é gostar do perfume quente da mão dos pais e dos avós e amar o perfume fresco das mãos dos netos.
Nas ruas dos nossos filhos e dos nossos netos devia viver, como nas ruas dos nossos pais e dos nossos avós, a paciência que habita o veludo dos hábitos, suave, granulada e tranquila, e que conforta o tempo que passa. Assim, os tecidos do pó, que reconfortam todos os regressos, seriam a arte depositada dos esquecimentos.
Nas paredes das ruas dos nossos filhos e dos nossos netos deviam estar grafitadas todas as palavras importantes dos nossos pais e dos nossos avós, porque os nossos avós eram de pedra e os nossos pais de grãos de areia. Nem mais. Todos os homens e mulheres de pedra se edificam de grãos de areia, fazem-se, desfazem-se para se reerguerem e nos deixarem frases como estas:

— Abençoado seja o coração que fraqueja.
— Quando os amigos se transformam em silêncio não faz mal: oferecemos-lhes uma árvore.
— Só nos habituamos aos lugares depois que todos se tenham habituado a nós.
— Regressem, sem desistir dos vossos fantasmas.
— Ninguém regressa para desistir.
— Todos os ausentes, que são os vossos fantasmas, esperam nas casas onde viveram. Transformaram-se em ilhas silenciosas que parecem desabitadas, abandonadas. Ali, em ruínas, estão, por certo, as floreiras e os canteiros invadidos por ervas daninhas. Mas as pessoas não. Homens e mulheres, estão lá: pessoas depositadas em pó, velhas, peregrinas, à espera que o destino encontre o dardo capaz de acertar no alvo.
E o destino hão de ser os netos que hão de ser pais e hão de ser avós.
— Quando olharem para algo que vos pareça estranho, não queiram descobrir nada, observem apenas, aprendam-no; se o conseguirem, perceberão que a estranheza desaparece e a memória fica.

Fica para ajudar os meninos e meninas a serem pais e avós, para voltarem a ser netos, como nós.

José Dias Pires
(texto adaptado de O Colégio Deformatório)


Comentários

  1. http://coraoquesenteacordaterra.blogspot.com/

    COMO SENTEM, A INQUIETAÇÃO DE QUEM É E SENTE O PASSAR DAS LUAS CHEIAS, HOJE!
    DESAPARECE AGORA, AOS POUCOS NO HORIZONTE.

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  2. Muito bom como sempre, todo o avô já foi neto e será sempre o espelho do avô que teve, neste caso que tivemos e como foi bom sermos netos daquele avô e por isso como é bom sermos avós agora.
    Abraço mano do meio.

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  3. Muito bonito, Zé Pires. A Julieta é uma rapariga de sorte.

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