Vindimar e preparar a escrita
Testemunho (Aguarela, 2012)
Este é mais um texto adaptado do romance que
um dia, prometo, há de ganhar o lado de fora da gaveta:
As
Confissões de Anaclepto um Ladrão de Ideias
Sugiro um bom gole de vinho do Porto para acompanhar
a melhor de todas as metodologias de escrita: La Part des Anges (O Quinhão dos Anjos) — a parte do vinho que se
evapora através do telhado das caves quando o envelhecimento é feito em casco
ou em tonel.
Se La Part des Anges ajuda um vinho do Porto
a perder gradualmente algum do seu volume pela evaporação de uma parte (aliás,
pequena) da humidade e da aguardente, os compostos aromáticos, açúcares e
ácidos, que não evaporam, tendem a ficar mais concentradas com o tempo, e o
vinho quase se torna numa essência, imagine-se o que pode acontecer às ideias
transformadas em palavras escritas (e estas em textos literários) se lhes damos
tempo para que se evaporem algumas humidades (insistências) e aguardentes
(exageros enriquecedores)?
Sigam-me, por favor.
Uvas e palavras.
1 — Pegue-se nas uvas depois de vindimadas e
desengacem-se os bagos dos cachos antes de se esmagarem (o que, no caso das
uvas, não é uma humilhação, antes o primeiro elogio). O desengace e o
esmagamento são a etapa inicial da libertação das uvas — se bem tratadas,
caminham para vinho; se destratadas, condenadas a vinagre.
Achem-se as palavras que habitam as ideias.
Considerem-se apenas as que potenciem a surpresa do novo e calquem-se de
sentimentos e sensações (as palavras, depois de apertadas, tendem a expandir-se
em liberdade criativa). O achamento é sempre o primeiro degrau da escrita,
antes mesmo de se saber qual o sentido da escadaria.
2 — Deixe-se o mosto sofrer, sem altas
febres, em poucos dias. Na fermentação ganhará doçura, intensidade.
Não se obriguem as palavras ao compromisso
definitivo, para que possam decidir até quanto pesarão para o seu dono,
aliviadas (depois) para a literatura.
3 — Escorra-se o mosto para que o seu
líquido repouse enriquecido do suor que outros mostos destilaram, em copiada
água(ardente).
Decalquem-se as palavras até que satisfaçam
o (minucioso) destilar dos copistas.
4 — Entregue-se o mosto à prensa, na certeza
que o aperto lhe emprestará mais cor e aroma.
Emprestem-se as palavras (ou tomem-se
emprestadas) para que as autorias (dadas ou tomadas) vivam (sem aperto) um
momento de homenagem.
5 — Separe-se o vinho das indesejadas
partículas, segundo a vontade da (trasfegadora) deusa do ar e do sabor que
limpa a alma do vinho.
Recolham-se as palavras nas salas de
inventar (ou descobrir) onde se depositam (todas) as partículas das almas dos
autores.
6 — Amadureça-se o vinho (por velhice). Que
os deuses do tempo lhe preservem (na repetição dos dias) aromas e cor.
Repitam-se (criativamente) as palavras à
exaustão da escrita. O eco literário há de ganhar (no tempo) condição de
teoria.
7 — Lote-se o vinho na (sábia) mistura dos
sabores. Pequenos roubos que se elevam à condição dos grandes feitos.
Faça-se a revolução dos textos com as
palavras roubadas às ideias. O roubo que antecede a redistribuição criativa sempre
apadrinhou a novidade.
8 — Clarifique-se o vinho no refrigério da
sombra, para que ganhe luz (cópia a cópia) quando dialoga connosco em cada
taça.
Escrevam-se as palavras ditas através da
arte da interpretação (criativa) para que ganhem luz em todas as sombras
escondidas no papel.
9 — Encaderne-se (por fim) o precioso
néctar, para que o descubramos no acaso (orientado) da sabedoria dos que leem
as bebidas.
Engarrafem-se as palavras (todas) e
lancem-se no mundo. Espere-se que o autor (inteligente) tenha sabido gerir o
seu potencial criativo, a sua teimosia perseverante, e o seu olho de pintor,
porque nem sempre se descobre (por acaso) o agradável de quem bebe as palavras.
Fica por saber se com estes nove passos
produziria bom vinho (nunca me facilitaram a matéria prima), mas sei que nos
espelhados nove princípios da La Part des
Anges (O Quinhão dos Anjos) se conseguiram alguns livros bem acima da
mediania.
Eis o meu cálice de porto em palavras:
Límpido «A paciência que habita,
suave,
Transparente o veludo dos hábitos,
Com intensos reflexos acarinha o tempo que passa
granulada, em paz.
E lágrimas Tecido de pó:
Tranquilo reconforta todos os regressos.
A arte dos esquecimentos,
Numa crescente gradação depositada.
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