Há sessenta e seis anos creio que ...
Há sessenta e seis anos creio que a vida
queria que eu tentasse ser um criativo, um inventor de acasos, um contador de
espantos, enfim, um mentiroso.
E fui. E sou. E serei: alguém que sabe como
utilizar a mente.
Afinal o que tem em mente o mentiroso ao
servir-se da mentira? Criar, recriar e espantar, aproveitando-se de acasos?
«Nem na literatura, quanto mais na vida!»,
gritou-me, num pesadelo, José Rodrigues Miguéis, o meu definitivo mestre. «Para
que andas tu a fazer-te discípulo, à procura do Verdadeiro Método de Estudar a
Escrita, se não escreves? De que te servem as lições sobre diálogo e maiêutica
de Sócrates, se te limitas a jogar um xadrez de palavras com as tuas ideias?
Como instrumentalizas o livre arbítrio de Agostinho de Hipona e a narrativa
fantástica de Mendes Pinto, se te limitas a ser o escritor frustrado da tua imaginação,
verso e anverso numa narrativa fantasiosa que não é tua? Ladrão de ideias, e
isso basta-te? Resolves assim o desconcerto do mundo que aprendeste em Camões,
ou será que julgas ter descoberto o caminho marítimo para a história do futuro
que nem Vieira (o dono das palavras) conseguiu nos seus repetidos naufrágios?
Sei, vives a comédia humana de Balzac com a emocional, dramática e violenta
narrativa de Tolstoi, primeiro, e Irving Wallace, depois.
Que posso eu
ensinar-te, se me desejas mestre. Que quererás aprender, se te ofereces
discípulo?
Comigo aprenderás a ser apenas mais um Ladrão de
Ideias. Olha, pelo sim, pelo sim, vou ensinar-te o meu
Teorema
do Desprezo do Medo:
Sempre
que me invada a tentação do esquecimento, devo lembrar-me: se o que escrevo se baseia na saudade dos
sentimentos que nunca vivi, obrigo-me a perder o medo e observar a beleza do precipício.
Eu, o discípulo, olho o precipício e pergunto:
Será que foi assim?
Duvido.
Duvido e escrevo:
O
elogio da dúvida.
Duvido:
como elogiar a dúvida?
Quem
elogiar, na dúvida?
O
leitor? O editor? Um ente querido do autor, e acrescentar afetos? Um livro que nos
marcou, e aduzir cultura?
Ler:
significa estabelecer um compromisso, ou um vínculo com o autor?
Escrever:
será possível para quem não aprendeu a ler para além da leitura?
Aprender
a ler: satisfazer a curiosidade, afinar a atenção, ou propiciar a diversão das
memórias?
Livro:
David Copperfield, de Charles Dickens, onde o narrador transpira a honestidade
dos «ses» condicionais, incertos, frágeis, que fazem com que tudo nos pareça
verdade?
Ler
como quem escreve: ser solidário, comprometido, vinculado, dedicado, atento,
enfim, ser o adjetivo mais que perfeito do autor?
Porque
escrevo?
Para
não me entregar a quem despreza ou arregimenta as nossas vidas?
Para
contrariar quem quer que andemos a passo certo e sincopado?
Para
ter o poder de criar felicidade, e o seu contrário?
Para
quem escrevo?
Para quem me vê, ou os que me ouvem?
Para
quem levanta os olhos das minhas palavras e se apercebe que o sol rompe as
nuvens que se dispersam?
Para
quem acredita que os meus mundos velhos são a sua novidade?
Quando
escrevo?
Gostava
de saber que é quando a minha alma ganha asas e começa a voar… mas tenho tantas
dúvidas.
Para
o arco-íris?
Bem
ergo os olhos para saber se é, mas não me sai o discurso.
E
hoje é já amanhã.
É
isso, pouco direi: Bem-haja, hoje é já amanhã. Prometo escrever cada vez menos
e ler cada vez mais. Bem-haja.
Mas falta-me agora a Oração do Bem-haja
Oração
do Bem-haja
Bem-haja
a razão que me ofereceu o bom senso.
Bem-haja
a igualdade que dá a todos os homens a capacidade de bem julgar.
Bem-haja
a oferta de berço que nos permite existir e distinguir o verdadeiro do falso.
Bem-haja
os respeitos, os gostos e os juízos que não se discutem.
Bem-haja
os trabalhos que nos agradam e os prazeres que nos aborrecem.
Bem-haja
o deleite do amor para fruir sem demonstração.
Bem-haja
a liberdade de expressão, e o seu respeito, como quesito principal.
Bem-haja
a vida por ser não eterna, o que seria muito aborrecido.
Mas como bom (medíocre) Ladrão de Ideias que
aprendeu com o mestre, obrigo-me ao
Elogio
do Roubo
Passamos
a vida a roubar as portas: as minhas, as nossas, as vossas. Mas apenas se forem
feitas de madeira, de matéria morta. Haverá, pois, coisa mais viva que uma
porta, inventada para abrir, quando se fecha, ou para fechar, quando se abre?
Haverá
coisa melhor para roubar que a minha, a nossa, a vossa porta?
Será
que isso importa, à porta?
Mas
importa ao ladrão que a rouba, à porta.
A
minha boca, os nossos olhos, os vossos livros? Tudo isto nos transporta, e se
transforma, e se transtorna até passar o patamar da porta que o ladrão, viva o
ladrão, roubou.
Roubou
a sombra do menino que atravessou a porta. Roubou o tempo do amante que esperou
à porta. Roubou o sonho da mãe que pariu na porta. Roubou a vida que, afinal,
tanto importa a quem pouco se importa se a porta, depois de roubada, se
importa, ou não.
O
ladrão?
O
ladrão sou eu.
Roubo
as memórias. As minhas, as nossas, as vossas que me batem à porta, ou que
alguém me traz num livro ao qual eu abro a sua porta, para lhe poder roubar
todas as palavras.
Viva
o ladrão!
Porque
escrever, e ler, é roubar para nós tudo o que importa.
Dito o que queria dizer, começo
descansado os dias que hão levar-me aos sessenta e sete anos.
José Dias Pires
(Como bom aluno confesso: a maior parte
deste texto foi surripiado ao meu Romance
Anaclepto — As Confissões de um Ladrão de Ideias , se alguma vez for
publicado)
E que sejam dias repletos de roubos, furtos, criações, imaginação, transmaginações, textos, possíveis livros, futuros livros, quases-tudo, pinturas, sorrisos, purés de batata, bolos de mármore e leituras, as que o tempo permita! :) Parabéns, meu pai querido.
ResponderEliminarUm elogio da sabedoria para começo, está excelente! sim, porque o tempo te prende- como a todos - à dimensão inexorável do seu proprio ritmo. voa, como sempre. anos a fio.
ResponderEliminarEU ESCREVO PARA MIM, TU ESCREVES PARA (SI)TI<<<<>>>>NUMA INSONDÁVEL, INATINGÍVEL LUTA DE ESQUECERMOS O MEDO QUE TUDO ACABE, JÁ AQUI.
ResponderEliminarQUE MERDA!
RESTA>Bem-haja a vida por ser não eterna, o que seria muito aborrecido.
MAS,,,SE FOSSE SERIA BOM.
Muito bom! Os dias, que te levarão aos sessenta e sete anos irão trazer (a)casos inventados e recriados em forma de texto ou de “Quases” esculpidos no pau ou na pedra, para tua satisfação e para deleite dos que deles podemos usufruir.
ResponderEliminarBeijo grande Mano do Meio.
Ninguém te conhece há mais tempo que eu, mas apesar desta verdade continuas sempre a surpreender-me ou talvez não, por isso rouba e continua a roubar mas sempre assim, imagina e continua a imaginar mas sempre assim, cria e continua a criar mas sempre assim e já agora continua a escrever, para que ao ler-te, possamos nós roubar-te para nosso deleite. Bem hajas por seres o meu irmão do meio. Grande abraço do Mano Velho cheio de orgulho.
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