Os autores no escuro das noites de insónia
Pessoa (Aguarela, 2011)
Ontem foi dia dos autores.
Muitas vezes, é no escuro das noites de
insónia e na limpidez das páginas em branco que os autores tropeçam na verdade
dos outros, vislumbrando as imagens e as formas que lhes parecem corresponder à
perceção das suas verdades.
E qual é, afinal, a sua verdade?
Pessoa olhava para trás e via-a plural.
Tantas verdades, encadeadas umas nas outras, que para os mais distraídos
parecerão mentiras e que ele gostava mais de as considerar
exercícios criativos.
Momento estranho, o de criar personagens que
nunca existiram. Aquilo que originarão é sempre incerto, inseguro, chega até a
ser alucinante, capaz de vencer o vencedor — o autor, e de trucidar os
beneficiários — o editor e os leitores. Não nos querem lá, resistem-nos, fazem
de nós «gato-sapato» e jogam connosco à cabra-cega.
Enfim, apagam-nos, mesmo que não queiramos
ser invisíveis.
Eu autor em boa verdade vos digo que nunca
consegui deixar de ser aquela «ave rara» (de manhã pombo, à tarde rouxinol) que
sonhava transformar-se em águia, morar sozinha no cume da montanha e poder
olhar o sol sem medo de voar na sua direção. Afinal não fui mais que ave de
parapeito, beiral ou galho, capaz apenas de partilhar as migalhas que guardou.
Um espólio de migalhas: textos remendados num
caderno de memorandos, uma espécie de céu e de estrelas que não me canso de
observar quando me esqueço os olhos sobre as palavras.
Ideias, memórias, roubos (mais ou menos
evidentes) de pirilampos, de orvalhos madrugadores, de pardais que saltitam
sobre folhas de jornais abandonados a fingir que lêem as notícias, de folhas de
outono que me atapetam os pés, de pó das estradas onde fui vagabundo, de
saudades dos sonhos que não sonhei, dos bancos de jardim onde nunca dormi, dos
panos oferecidos pelos caixotes de lixo que a velha gaiteira transformou em
lenço para enxugar as lágrimas (ou assoar o ranho).
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