Nunca a Língua Morta nem as Palavras Adormecidas













Padre António Vieira (Pasta ZP, 2011)







Qualquer escritor gostaria de poder declarar à inspiração sublime: «Os meus livros são sempre fecundados por ti». São estas as palavras que lhe habitam a antecâmara do sono todas as noites quando, antes de dormir, se pergunta qual o papel que têm, na literatura, os editores, os leitores privilegiados, ou os escritores frustrados que nunca sentiram as verdadeiras dores do parto criativo e que entre ter uma ideia para histórias diferentes e ter muitas ideias para a mesma história, tendem a escolher a segunda possibilidade porque a primeira é bem mais trabalhosa.
Alguém que sempre gostou muito de ler, e já tinha bem desenvolvidas as competências de «ladrão de ideias», entrou num sótão onde funcionava a «Universidade da Travessa do Fala Só» que acolhia a Tertúlia das Letras à qual era pretendente.
Sentiu-se atabafado: as paredes laterais e a meia parede onde estava a porta por onde entrara estavam cheias de inscrições (a língua morta). Na parede do fundo, uma estante com mais de uma centena de livros e algumas teias de aranha (as palavras adormecidas).
Os jurados estavam sentados nos cadeirões e poltronas que rodeavam as duas pequenas mesas de apoio colocadas ao centro. Sobrava a cadeira de balanço para onde o encaminharam (descobriria depois que era elemento fundamental para o ritual de iniciação).
Desajeitado, sentou-se na armadilha que lhe prepararam para testar a sua resistência. Ficou quieto, e esperou. Perguntou se podia tomar notas do que ouvisse, pois estava ali para aprender.
«Claro que podes», foi a resposta. «Quando quiseres falar, fala, não te acanhes.»
Conseguiu aguentar-se sem balançar, mesmo quando anotava a receção do magote de palavras (na aparência acordadas, mas profundamente sonolentas) que cada um dos jurados deixou cair numa cascata desordenada e informe.
Até que um lhe perguntou: «Então, que tens para nos dizer?»
«Não tenho palavras», respondeu.
«Essa agora! Estás farto de escrever!»
Meio irritado, leu a última coisa que tinha escrito: «Qualquer palavra ficaria fascinada ao entrar num ambiente destes», disse a medo, antes de concluir num tom acima: «mas não as trouxe comigo. Apenas folhas em branco, à espera das vossas.»
Olhou em volta: aquele local, com tantas palavras (nas paredes e nas estantes), não parecia o mais adequado para as que esperavam nas mesas por um aconchego. Aparentemente notáveis, potencialmente famosas, insignes, quiçá de alta categoria, eram palavras que dormiam, registadas numa língua à espera da ressurreição, impassíveis, e pior ainda: impossíveis de ser assanhadas — infantis.
Disse um dos jurados: «Escrever? Bem, a esta hora já percebeste que escrever não se torna mais divertido se existir uma preocupação, digamos, fixada em demasia na ideia da perfeição. E o que é essa coisa de contar uma história? É ter algo a dizer porque se acha que estamos perante uma boa ideia, a descrição, as personagens, os diálogos e o ritmo perfeitos? É isso que passa a ser o mainstream e que determina a qualidade da obra? Ou é a criatividade — a especiaria que só os verdadeiros amadores da escrita possuem?»
Respondeu com uma pergunta: «Em síntese: o escritor deve mandar a perfeição para as ortigas, lembrar-se apenas que escrever é a simbiose da leitura atenta do editor com a escrita que diverte o leitor, ou cair na facilitação da afirmação da existência a partir do rascunho sobre rascunho até que a vossa língua morta acorde as palavras adormecidas?»
Um outro concluiu: «E é assim que se dá vida à língua morta, e se acordam as palavras adormecidas, clientes dos nossos clientes…».
«As palavras clientes dos nossos clientes? O raio que o parta!», pensou e, sem se conter declarou: «Se me permitem, despeço-me com um muito boas noites para as vossas prezadas palavras, as tais clientes dos vossos potenciais clientes de trela. Retiro-me, ansioso por chegar a casa onde, sem maiores delongas e com o auxílio do meu velho dicionário etimológico, procurarei lidar com as suas genealogias.»


(Adaptação livre de um extrato do Romance a publicar Anaclepto — As Confissões de Um Ladrão de Ideias)

 
Tudo isto para vos relatar como nasceu o FRONTEIRA — Festival Literário de Castelo Branco, cuja 6ª Edição terminou a 15 de maio de 2018.  















Padre António Vieira (Aguarela, 2011)

Comentários

  1. Mas as palavras...essas somas de pequenos símbolos desenhados, nem sempre são palavras. Quase mentiras, os pensamentos incompletos.
    Ninguém, ou quase-Régio foi um HERÓI(!)
    -Porquê (?)
    Ainda perguntas porquê (!!!). Meu grande BURRO das palavras incompletas.
    Porque foi parido pelo Diabo e disse daí para a frente sempre as palavras completas, sem espaços vazios de sons. Mas os ouvidos das pessoas nunca querem ouvir a VERDADE-amiudamente dedicam-se a fazer de conta , quando ouvem uma história de alguém que sonhou a VIDA.

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  2. Não conhecia essa aguarela do Padre. Fico à espera do romance.

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